* O texto abaixo é a tradução livre da introdução do livro "The State of State Reform in Latin America", coordenado por Eduardo Lora, membro do Banco Inter-Americano de Desenvolvimento. O livro pode ser lido na íntegra no portal Google Books.
LORA, Eduardo. The State of State Reform in Latin America. Inter-American Development Bank. Washington: Stanford University Press, 2007.
A REFORMA DO ESTADO NA AMÉRICA LATINA: UMA REVOLUÇÃO SILENCIOSA
Traduzido por Rafael Zanatta[1]
Com a década de 80, iniciaram-se crises no intervencional, paternal e centralista Estado que, por meio século, os países latino-americanos, seguindo o exemplo da Europa, tentaram estabelecer, com diferentes graus de sucesso. A crise do Estado na América Latina manifestou-se de forma plena a partir da crise de dívida externa que estourou quando o México declarou a moratória em suas obrigações em 1982. A crise emergeu, a princípio, como um problema fiscal, porque as fontes que financiaram a expansão do aparatus burocrático por décadas finalmente secaram. Estas incluem a gradual monetarização de economias em expansão, lucros a partir de serviços públicos sob condições monopolísticas para as classes alta e média, contribuições de trabalhadores para a Previdência Social que ainda tinha poucos pensionistas, e receitas fiscais fáceis de se arrecadar, mas que sufocavam o comércio internacional e distorciam o investimentos e decisões sobre a produção. Os sinais de exaustão dessas fontes de receitas fiscais foram evidentes em diversos países na década de 70, mas as soluções foram adiadas porque a alta dos preços do petróleo, além de criar novas receitas brutas dos países exportadores como México e Venezuela, reciclou o excedente financeiro dos países produtores de petróleo do Oriente Médio através de empréstimos bancários para os países latino-americanos. Quando a alta das taxas de juros internacionais e a consequente crise de dívidas colocaram um fim nessas fontes de empréstimo, alguns países iniciaram cada vez mais a emissão desenfreada de moeda, colocando em movimento ou exacerbando os processos inflacionários já em curso em vários países. Em alguns anos, esse método iria também perder efetividade, bem como o lastro das moedas nacionais.
A crise dos Estados latino-americanos não era somente fiscal, mas era também uma crise do funcionamento da Administração Pública e, como consequência, uma crise da legitimidade política. A expansão do Estado desde a década de 30 havia sido fundada numa sólida base na Argentina, Chile e Uruguai, os quais já possuiam capacidade administrativa e qualificados recursos humanos, e que também se consolidou numa larga extensão no Brasil, Colombia, Costa Rica e México, pois cada um deles havia estabelecido uma densa rede de órgãos públicos relativamente eficientes. Já na década de oitenta, a complexidade do aparato administrativo na maioria dos países levou a uma “burocratização”, ou seja, excesso de emprego público, e ao baixo retorno de recursos utilizados, revelado na estagnação do lastro e na deteriorização da qualidade da educação, saúde pública, distribuição de água, eletricidade e serviços de telecomunicações. Nos países com as mais modestas capacidades burocráticas e com as mais fracas instituições públicas, não foi somente a deficiência de cobertura e qualidade que ficou evidente, mas sim os problemas críticos de corrupção e desperdício de recursos, e em alguns países, a restrição de políticas públicas por poderosos grupos e setores de interesses.
A crise de legitimidade do Estado assumiu uma variedade de expressões, dependendo do contexto político. Os regimes militares desenvolvimentistas no poder na maioria da América do Sul – promotores do desenvolvimento industrial e de investimento massivo em infra-estrutura diretamente apoiado pelo Estado, sem muita consideração as finanças e à viabilididade econômica – perderam o apoio popular que eles contavam, junto com a capacidade econômica de cooptar as elites empresariais e financeiras. Embora a ditatura de Pinochet ter de fato implantado um modelo de Estado em consonância com as novas ondas de mercado livre – neoliberalismo – e sucedido em rapidamente reativar a economica após a profunda crise de 1982, fazendo com que a qualidade de vida melhorasse, a democracia institucional profundamente enraizada na tradição dos chilenos atingiu um retorno completamente pacífico em 1990. As democracias de um-ou-dois partidos de Colombia, México e Venezuela foram forçadas a criar espaço para a participação de grupos políticos e sociais marginalizados, o que em última instância causou profundas mudanças no sistema político desses países na década de 90. Alguns dos mais países mais pobres da América Central, ainda comandados por governos patrimonialistas, experimentaram guerras civis e instabilidade política como precursores da democracia.
A crise multidimensional do Estado contribuiu decisivamente para a produção de três fenômenos comuns para todos os países da América Latina que modificaram as características políticas e econômicas da região. Esses três fenômenos eram democratização, estabilização macroeconômica (ou seja, a redução da inflação e o controle de maiores disordens fiscais associadas a isso), e a abertura desses países para o comércio internacional através da redução de tarifas e outras barreiras ao comércio. Dos 18 países latino-americanos da década de 80, apenas 6 eram governados por presidentes eleitos. Vinte anos depois, todos os países possuiam eleições regulares e, embora 11 presidentes tenham sido depostos entre 1992 e 2005, em todos os casos eles foram substituídos em poucos dias ou semanas através de macanismos constitucionais. A estabilização foi igualmente generalizada. No final da década de 80, nesse mesmo grupo dos 18 países, 11 tinham taxas de inflação maiores de 20% e 4 sofriam aumento de preços de 1.000% anualmente. Em contraste, no período entre 2001 e 2005, nenhum país teve taxa de inflação média maior de que 20%, e apenas 5 países registraram inflação em um desses anos citados (com o máximo de 41% na Argentina em 2002). A liberalização do comércio também foi um fenômeno comum. A média de tarifas em importados nos países da América do Sul caiu de 55% em 1985 para aproximadamente 10% em 2000, e no grupo dos países da América Central e México a queda foi ainda maior – de 66% para 6%. A abertura para o comércio internacional também refletiu na troca de serviços, investimento estrangeiro direto e finanças internacionais.
Obviamente a crise do Estado não foi a única causa da democratização, estabilização e liberalização do comércio. A globalização também contribuiu, pois a redução dos custos de transporte e a propagação de novas informações e tecnologia em comunicação aumentou o potencial de ganhos do comércio e das mudanças tecnológicas, ao mesmo tempo que a exposição desses países para as novas tendências ideológicas de gestão de Estado e de Economia intensificou-se. O colapso dos sistemas comunistas da Europa Oriental em 1989 e o retorno de capital internacional para os países latino-americanos – devido ao Plano Brady e a crescente liquidez internacional – ajudaram a consolidar o processo de democratização e criaram incentivos para o iniciar a reforma econômica. A frustração deixada pela “década perdida” de 80 e a promessa oferecida pela réplica de políticas adotadas pelo Chile contribuiram para fortalecer o interesse na estabilização econômica e na abertura de mercado. O sucesso dos países no Sudeste Asiático com modelos de crescimento econômico baseados em disciplina fiscal e exportação garantiram maior ímpeto para seguir uma nova direção política. Os elementos mais comuns dessa primeira onda de reformas nesse contexto resultaram no conhecido Consenso de Washington (Williamson, 1990).
Democratização, estabilização e liberalização do mercado são os pontos de partida deste livro. Essas tendências que, como nós vimos, foram em partes trazidas pela crise do Estado, ajudaram a propelir a reforma do Estado desde a metade da década de 80 (um processo que iniciou-se em muitos casos antes deste fenômeno). Pela sua própria natureza, a democratização levou à reforma dos sistemas políticos, especialmente nos sistemas eleitorais e no funcionamento dos Partidos, não apenas para fazer o sufrágio possível, mas também para ampliar a representatividade e relevância do corpo legislativo. A democratização também produziu várias reformas nos sistemas judiciais para prevenir o abuso do poder presidencial que ocorreu durante os regimos autoritários e para expandir o acesso à justiça para além das elites. Na maioria dos países, democratização expandiu-se durante os anos 80 e 90 em governos provinciais e municipais, aumentando a demanda popular para ampliar e melhorar serviços sociais e de residência mantidos por governos subnacionais, influenciando portanto as reformas nesse setor.
Do início, a estabilização do preço mostrou-se uma vitória sutil porque em praticamente todos os países ela começou a partir de cortes súbitos em gastos públicos ou na manipulação da taxa de câmbio, ambos impossíveis de serem mantidos indefinidamente. Os dividendos políticos em controlar a inflação eram tão ótimos, entretanto, que os partidos no poder rapidamente cerraram as fileiras para escorar as conquistas através de outras reformas, tais como garantindo independência ao Banco Central, fortalecendo o sistema tributário, ou privatizações, e quando esses apoios se mostravam insuficientes, reformando instituições orçamentais. O consenso sobre a importância da estabilidade dos preços, e da necessidade disto para se basear numa forte situação fiscal, também contribuiu para a reforma dos sistemas financeiros e previdenciários. A ameaça de uma crise nesses setores era – e em muitos países ainda é – um fator de fraqueza fiscal, pois o Estado é o garantidor desses sistemas.
A decisão de integrar as economias de forma mais próxima no comércio, investimentos, financimentos e ondas tecnológicas influenciou a reforma de várias funções estatais desde a metade da década de 80. A liberalização do mercado foi em si o reconhecimento de que o Estado estava perdendo a independência que precisava para proteger a economia e manter competitividade, para gerir políticas macro-econômicas em direções opostas às tendências financeiras internacionais, ou para se financiar das tarifas do comércio internacional. Consequentemente, políticas tributárias e instituições foram reformadas parcialmente para compensar a baixa receita tributária, mas também para aumentar a competitividade de produtos nacionais e atrair investimentos. As práticas regulatórias dos sistemas financeiros e a infra-estrutura foram adaptadas na medida do possível para padrões internacionais aplicáveis. Em países mais expostos à competição internacional, a liberalização também contribuiu para o início de reformas na Educação e no Judiciário e para aprimorar o Direito Autoral e de Patente (Intellectual property rights). Além do mais, a maior integração internacional provavelmente também contribuiu para a divulgação de ideias, facilitando, por exemplo, a propagação de reformas previdenciárias inspiradas no modelo chileno, a multiplicação de agências reguladoras independentes e a difusão de alguns programas bem sucedidos de assistência social, tal como o programa mexicano “Oportunidades”.
Quando a crise do Estado tornou-se evidente na década de 80 com o corte súbito de gastos públicos, liquidação de empresas estatais e o colapso virtual de algumas funções estatais nos países mais atingidos, oponentes da reforma criaram o mito de que o velho modelo paternalista e intervencionista estatal que gerou empregos públicos desnecessários seria substituído pelo Estado Mínimo, concentrado apenas na proteção dos direitos de propriedade, assegurando estabilidade macro-econômica, e garantindo acesso a apenas os mais básicos serviços de Justiça, Saúde e Educação. Esse temido Estado Neoliberal nunca se tornou uma realidade. Como esse livro documento extensamente, o novo Estado que está se formando após 20 anos da reforma é mais “socialmente liberal”, para usar o termo criado por Luiz Carlos Bresser Pereira (1998), arquiteto da reforma do Estado brasileiro durante o governo de Fernando Henrique Cardoso. Em comparação com o modelo de Estado prévio, esse é um Estado que é mais limitado em tamanho e objetivos; mais representativo e legitimado; menos centralizado; mais gerencial e menos burocrático; um promotor ao invés de um protetor do setor privado e do emprego; e um garantidor do acesso aos serviços básicos de Educação, Saúde, e Segurança Social, embora não seja necessariamente o produtor desses serviços em sua totalidade. Entretanto, assim como o Estado Neoliberal nunca se materializou completamente, esse Estado Socialmente Liberal não corresponde do Estado latino-americano.
Esse livro não busca analisar todos os aspectos da reforma do Estado desde a metade da década de 80. Seu objetivo limite é concentrar nas mais importantes áreas da reforma institucional, que foram muito menos sistematicamente estudadas do que as reformas econômicas resultantes da estabilização e desregulamentação – espinha dorsal do Consenso de Washington. Assim como apontado por Naím (1994), e verificado por muitos estudiosos subsequentes, a reforma institucional ou de “segunda geração” é um complemento necessário para a reforma do Consenso de Washington, acelerando efetivamente o crescimento e contribuindo para atingir outros objetivos de desenvolvimento.
Embora valiosos estudos tenham avaliado a reforma do Estado em diversas áreas, nenhum trabalho oferece uma visão panorâmica da reforma. Esse livro pretende completar tal vazio, utilizando uma série de monografias comissionadas pelo Departamento de Pesquisa do Banco de Desenvolvimento Inter-Americano (Inter-American Development Bank) para descrever o escopo dos principais aspectos da reforma das instituições estatais que ocorreram de forma silenciosa na América Latina. Esse esforço é parte de um trabalho ainda maior sobre políticas públicas que inclui estudos sobre os aspectos políticos do processo de reforma e o papel dos atores e das instituições políticos na tomada de decisão. Esses assuntos são tocados apenas de forma tangencial (veja Stein e outros, 2005).
Esse livro é estruturado ao redor de quatro areas principais da reforma institucional: (a) Instituições políticas e organização do Estado; (b) Instituições fiscais, políticas tributárias, e instituições de descentralização institucional; (c) Instituições de políticos econômicas setoriais; (d) Instituições de políticas sociais. Este é um agrupamento impreciso, pois, como veremos adiante, essas áreas da reforma interceptam-se em vários pontos. Da mesma forma, a separação da reforma econômica de “primeira geração” não é totalmente clara – o que não é surpreendente, considerando que a liberalização e as medidas de reforma institucional atuam em espaços comuns.
Em cada uma dessas áreas, esse livro sumariza o objetivo das reformas, descreve e mede seus escopos, e identifica o principal obstáculo para sua implementação e efetividade, especialmente as barreiras institucionais. A abordagem metodológica é essencialmente comparativamente estático entre a situação anterior e a posterior à reforma. Essa abordagem não faz justiça à complexidade do processo, ou à diversidade das experiências nacionais, pois ignora o processo político das reformas e seus resultados são baseados em indicativos quantitativos e critérios comuns.
A conclusão central dessa revisão da reforma do Estado é que a América Latina tem experimentado uma revolução silenciosa, na qual muitas dimensões do Estado foram gradualmente transformadas. O grau e a profundidade da reforma do Estado contrasta com a opinião corrente de que a região colocou muita ênfase em reformas macro-econômicas e de mercados-livres, e ignorou as dimensões institucionais do desenvolvimento.