O texto abaixo foi escrito por Daniel Vargas, Doutorando em Direito em Harvard e ex-ministro do SAE, e publicado no blog Direito-Economia-Sociedade.
É possível unir as ideias de Direito e Desenvolvimento?
* Daniel Vargas[1]
A resposta tradicional da academia jurídica é negativa: direito e desenvolvimento seriam idéias no mínimo inconciliáveis, para não dizer antagônicas. O direito seria algo estático, determinado, que se tem ou não se tem. Basta recordar a posição expressa pelo positivismo e pelo liberalismo clássico. Desenvolvimento, por sua vez, exprime uma idéia de movimento, de processo, de construção de algo que ainda não existe. A posição tradicional considera a idéia de desenvolvimento um adjetivo que pode ajustar-se à substância do direito, mas não um elemento de sua definição.
Tentativas de fundir as duas idéias estão na ordem do dia. O que se busca não é tanto precisar o conceito de direito em si (mais uma vez, como tentaram e tentam os positivistas), mas determinar o método mais apropriado de reflexão sobre o direito – o que gera controvérsias. Em meio à disputa metodológica, três correntes de pensamento se destacam: (i) a economicista, (ii) a crítica e (iii) a liberal-desenvolvimentista. Em todas elas, raciocinar sobre o direito é o mesmo que raciocinar sobre o ideal de desenvolvimento.
A primeira corrente é a economicista. Aqui, a idéia central é a de que o foco das instituições do Estado na eficiência econômica é o melhor mecanismo para promoção do bem-estar da sociedade. Em outras palavras: pensar o direito sob o prisma da eficiência teria o mérito do estimular o desenvolvimento. Richard Posner, professor da Universidade de Chicago, é provavelmente o mais conhecido expoente dessa linha de pensamento (cf. Economic Analysis of Law, New York: Aspen Publishers, 2007). A obra Fairness versus Welfare (Cambridge: Harvard University Press, 2002), de Louis Kaplow e Steven Shavell, é um atual e influente exemplo dessa perspectiva.
A segunda é a corrente crítica. A atitude do pensador filiado a esse movimento é apontar as incoerências e riscos das teorias que tradicionalmente governam o pensamento jurídico na atualidade. David Kennedy e Duncan Kennedy, ambos professores de Harvard, têm freqüentemente insistido na irracionalidade e nos efeitos danosos da tradição positivista, liberal clássica e economicista para sociedades que aspiram o desenvolvimento. O movimento “Law and Development”, tal como é hoje divulgado, segue basicamente essa tendência. O livro The New Law and Economic Development: A Critical Appraisal (Cambridge: Cambridge University Press, 2006), recentemente editado por David Trubek e Alvaro Santos, é uma ótima referência dessa perspectiva.
A terceira é a via liberal-desenvolvimentista. Assimilando parte das críticas apresentadas pelos dois movimentos anteriores, esta linha de pensamento busca reformular o pensamento liberal clássico e conciliar os ideais de justiça com a indispensável atenção para os seus efeitos na realidade de cada sociedade. Amartya Sen é uma voz importante nessa perspectiva. A. J. van der Walt, professor sul-africano de direito de propriedade (cf. Constitutional Property Law, Cape Town: Juta, 2005) e Frank Michelman, constitucionalista e filósofo de Harvard (cf. “The Constitution, Social Rights and Liberal Political Justification”, 1 International Journal of Constitutional Law 13 (2003)), tentam incorporar esse método à teoria do direito.
O interesse desse debate para nós, brasileiros, é muito simples. Optar por uma ou outra vertente confere ao direito uma responsabilidade diferente, e altera a maneira de agir do jurista. Por exemplo: qual deve ser o papel do direito no combate à pobreza no Brasil? E qual o papel do jurista nesse debate?
Segundo o positivismo e o liberalismo clássico, é provável que se diga que a pobreza é um problema econômico, não jurídico – ao menos, não diretamente. Se existe fome, isso seria fruto das ‘contingências’ da sociedade: é a economia que não é forte o suficiente, ou é a política que ainda não aprovou as leis adequadas para combater a pobreza. Nessa visão, o jurista está, em princípio, livre da responsabilidade de enfrentar as desigualdades sociais, até que a economia e a política cumpram seu papel.
De acordo com a vertente economicista, o direito deve ser pensado segundo a máxima utilitarista da felicidade geral. Essa máxima, segundo os economistas, concretiza-se com a aplicação do critério de eficiência econômica à regulação do mercado e das relações sociais. Em tese, todos seriam beneficiados indistintamente: maior produtividade geraria melhores condições de vida para todos. Cabe ao jurista pensar como é possível garantir as condições de uma competição livre. E deve o juiz, ao decidir um caso concreto, levar em conta os objetivos de sua decisão, mais que os valores constitucionais de liberdade e igualdade que as pressupõe.
Um problema dessa perspectiva (economicista), alertam os críticos, resulta do distanciamento entre o ideal garantido pela eficiência econômica e as contingências da vida em sociedade. Se vivêssemos em um mundo perfeito, a lógica econômica provavelmente alcançaria seus fins. A realidade social, contudo, é bem diferente. O grande risco é que as promessas de desenvolvimento do economicismo saiam pela tangente e, em vez de promover o bem-estar geral, beneficiem apenas uma minoria, e ampliem a desigualdade social.
Outro problema, segundo os liberal-desenvolvimentistas, é que a máxima da eficiência econômica possui, se muito, um comprometimento apenas indireto com os mais necessitados. O combate à pobreza em uma sociedade marcada pela desigualdade exigiria um ideal de direito comprometido prioritariamente com os mais fracos.
Em meio a esse debate, forma-se uma interessante sintonia. Economicistas, críticos e liberal-desenvolvimentistas disputam a melhor compreensão do direito. Mas todos concordam em que a resposta correta deve tratar direito e desenvolvimento como algo integrado.
O que é atrasado no discurso acadêmico contemporâneo é alimentar a crença de que essas idéias podem ou devem ser dissociadas, e que se pode identificar a essência do direito. Em vez de buscar essa essência, ganharíamos mais se atentássemos para uma pergunta muito mais relevante: Qual a melhor maneira de se pensar juridicamente o processo de desenvolvimento social e econômico em um país?
A essa questão, adicione uma pitada da realidade brasileira e se tem um prato cheio para reflexão: Como se deve compreender o direito, de modo a promover o desenvolvimento social e econômico em uma sociedade marcada pela pobreza extrema e pela radical desigualdade social? Eis o rumo correto dos debates.
[1] Mestre em Direito pela UnB e pela Universidade de Harvard.