* Elaborado por Rafael Zanatta

1. BREVE INTRODUÇÃO

Neil MacCormick (1941-2009), um dos maiores jusfilósofos britânicos, professor de Ciência Jurídica (Jurisprudence) da Universidade de Ediburgo na Escócia, publicou em 1994 o artigo entitulado Four Quadrants of Jurisprudence, no qual propôs, dentro da Teoria do Direito da Common Law, uma divisão do pensamento jurídico em quatro campos: direito cru, direito doutrinário, direito nas ciências sociais e valores fundamentais e princípios.


Nesta perspectiva, MacCormick oferente um plano meta-teórico, que deve ser compreendido dentro do ordenamento jurídico britânico, a partir da perspectiva do direito feito pelos tribunais (judge-made-law) e do direito casuístico (case law), conceitos estes extremamente estranhos ao sistema româno-germânico brasileiro, que tem como fonte primária do direito a lei e não o precedente judicial.


Não obstante as diferenças do direito inglês e do direito pátrio, a abordagem metodológica da ciência jurídica é relevante ao examinar o direito a partir de diferentes perspectivas e propor uma teoria reconstrutiva de análise do direito com base nas decisões judiciais, seguindo a tradição da common law.


Tal análise atenta para a inter-relação teórico-prática do direito. Neste viés, nos é interessante analisar a metodologia de MacCormick, em razão da gradual superação da dogmática jurídica nas universidades de direito do Brasil. De fato, é preciso uma abordagem mais realista, levando em conta o ativismo judicial brasileiro e o direito como experiência.


2. OS QUATRO QUADRANTES DE MACCORMICK


MacCormick nos apresenta o seguinte quadro:

Fonte: MACCORMICK (1994)[1]


O “Direito Cru” (Quadrante 1) descreve o leque de atividades relacionadas ao direito que juristas e pessoas envolvidas na área jurídica praticam diariamente em suas vidas. De acordo com MacCormick, ele compreende, de um lado, descrições do que os bacharéis laboram em seus escritórios, o que os advogados pleiteam perante as cortes e o que os juízes fazem quando determinam o resultado de um caso e, por outro lado, leva em conta o que o corpo legislativo cria, o que o parlamento aprova e os burocratas (e outros) implementam. Ele também inclui o que os cidadãos fazem quando preenchem formulários de taxas públicas, recebem seguro, pagam financiamento habitacional ou aluguel, compram bens de consumo, etc. MacCormick contrasta esse “Direito Cru” com o “relativamente ordenado e sistemático significado do direito” que os estudantes são ensinados nas universidades. Desta forma, o “Direito Cru” é relacionado com o “Direito em Ação” e não tão somente com o “Direito dos Livros”.


O “Direito Doutrinário” ou Dogmática Jurídica (Quadrante 2) tenta gerar algum sentido das decisões que são imputadas ao direito cru, ao analisá-las “por dentro”, ou seja, a partir da perspectiva dos atores jurídicos. Ela é desenvolvida por juízes (durante a justificação de suas decisões) e legisladores (durante a formulação de leis), e por juristas que se engajam criticamente com decisões judiciais e com a lógica subjacente às decisões jurídicas; idenficam as regras jurídicas, normas e valores; e analisam seu papel na formulação do direito casuístico e na promulgação do direito estatutário. O “Direito Doutrinário” procura dar conta do direito em seus próprios termos.


O “Direito nas Ciências Sociais” (Quadrante 3) envolve analisar “O Direito”, o que compreende o Direito Doutrinário (Quadrante 2), bem como o Direito Cru (Quadrante 1), assim como as instituições legais, a partir da perspectiva de uma ou mais ciências sociais. Instituições legais, a as práticas desenvolvidas por elas, são estudadas da mesma forma que outras instituições sociais. Em contraste ao Direito Doutrinário, examinar o direito desta perspectiva envolve analisar o direito “por fora”, ou seja, a partir de um ponto externo de referência. “Direito nas Ciências Sociais” cobre as atividades de teóricos sociais e pesquisadores sociais empíricos, em suas tentativas de entender a relação de duas vias entre direito e sociedade, ou seja, como a sociedade dá forma ao direito e o impacto do direito à sociedade.


O “Valores Fundamentais e Princípios” (Quadrante 4) compreende a Filosofia do Direito e, entre outras, a elaboração crítica de teorias dos direitos, princípios de justiça e conceitos de bem-estar social e suas aplicações ao Direito Cru (Quadrante 1) e Direito Doutrinário (Quadrante 2). Apesar de nenhum dos outros quadrantes ser classificado como livre de valores, este quadrante é essencialmente o campo dos valores. O quadrante “Valores Fundamentais e Princípios” envolve a ciência jurícica e a Teoria do Direito e busca explorar a relação entre o direito e princípios filosóficos.


3. CONSIDERAÇÕES SOBRE A ABORDAGEM DE MACCORMICK


A partir desta divisão, constata-se que o direito cru, compreendido como atividade (law-as-activity), fenômeno (law-as-phenomenon) e produto da experiência (law-as-lived), é composto pelo material ainda não analisado teoricamente.


A divisão serve ao propósito da atividade reconstrutiva, pois o direito cru atua como pressuposto teórico para a transformação e sistematização do material bruto pela doutrina jurídica (doctrinal law), sendo irrelevante se o mesmo se efetiva ou não na prática.


A utilização dos quadrantes é essencial para o método de reconstrução racional proposto por Neil MacCormick, que possibilita ao teórico do direito confrontar os dados fragmentários, capturados pela consciência, e reinterpretá-los à luz de princípios e valores considerados relevantes pelo teórico com o objetivo de promover uma aproximação racional, sistemática e coerente do fenômeno jurídico.


Para MacCormick fica clara a importância com que princípios e valores concorrem para a formação de uma teoria, sendo que a atividade acadêmica não é, e nem pode aspirar a ser, um empreendimento moralmente neutro[2].


Considerando o crescente ativismo judicial no Brasil através dos Tribunais Superiores (STJ, STF) e a valorização do precedente judicial através da Súmula Vinculante e da Lei de Recursos Repetitivos, poderia-se buscar no ensino jurídico brasileiro uma reconstrução racional das decisões judiciais pré-selecionadas através do método de MacCormick, expondo a estrutura dos argumentos utilizados pelos magistrados na solução de casos concretos, facilitando assim a identificação de padrões de raciocínio e a elaboração de uma teoria a seu respeito.


Desta forma, os “quatro quadrantes da ciência jurídica” contribuiriam para a sistematização e construção de um modelo coerente de direito, utilizando-se do método de reconstrução racional para a formulação de uma teoria orientado por princípios e valores.


[1] MACCORMICK, Neil. Four quadrants of jurisprudence. In: KRAWIETZ, W. et al (eds.). Prescriptive Formality and Normative Rationality in Modern Legal Systems. Berlin: Dunker & Humblot, 1994

[2] “Values and principles enter into legal science in a crucrial way. The process of rationally reconstructing law as coherent normative order requires the formulation of governing values and principles so as to make sense of the whole and create the possibility of practical coherente in presentation and apprehension of law.” MACCORMICK, Neil. op. cit., p. 57.



1 Comment to “Os Quatro Quadrantes da Ciência Jurídica segundo Neil MacCormick”

  1. Unknown says:

    Talvez a melhor tradução para "Jurisprudence" fosse Teoria do Direito e não Ciência Jurídica, como constatei analisando as traduções de Ronald Dworkin (Taking Rights Seriously).

    De qualquer forma, a compreensão não fica prejudicada por este aspecto.

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