* Escrito por Alonso Freire (UFMG), do blog Teoria do Direito.


O primeiro contato que tive com os escritos de Ronald Dworkin deu-se em 2002, precisamente no mês de setembro daquele ano, quando foi publicada no Brasil a tradução de Taking Rights Seriously, com o título Levando os Direitos a Sério. Naquele semestre, eu estava cursando o oitavo período da faculdade de Direito. Àquela altura, eu já tinha passado por todas as disciplinas propedêuticas do curso e para a maioria dos meus colegas voltar a estudar Teoria do Direito era uma perda de tempo, devido ao fato de que o Exame de Ordem se aproximava e antes deles tínhamos que elaborar e defender, perante banca examinadora, nossas monografias de conclusão de curso. Além desses razoáveis argumentos, havia uma circunstância agravante. À época, eu trabalhava no Tribunal de Justiça do Estado, exercendo minhas funções no gabinete de um dos seus desembargadores. Minhas atividades eram supervisionadas por assessores que não estavam nem um pouco preocupados ou interessados em discussões que fugissem ao Direito Processual Civil. A despeito de todas essas circunstâncias, naquela época eu já estava decidido a me dedicar à pesquisa e à docência. Também já estava decidido a me submeter à seleção do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, tendo pouco mais de um ano para me preparar.


Comecei a ler o livro sem nenhuma noção daquilo com que eu iria me deparar. Meus conhecimentos sobre a Teoria do Direito limitavam-se aos escritos de Norberto Bobbio e Hans Kelsen. Eu já tinha ouvido falar da distinção feita por Dworkin entre regras e princípios e sabia que isso tinha sido responsável por uma importante guinada no Direito. Contudo, após ler os primeiros capítulos daquela obra, percebi que eu estava diante de um teórico profícuo o bastante para que se considerasse injusta a redução da sua contribuição apenas à distinção por ele feita entre regras e princípios.


No final da década de 1990, a maioria dos autores brasileiros já aceitavam ser o Direito um conjunto de normas, sendo norma um gênero do qual seriam espécies as regras e os princípios. Mas pouquíssimos autores atentavam para o fato de que essa distinção não dizia respeito apenas ao modo de aplicação desses padrões. A grande maioria não percebia ou omitia as implicações mais profundas que decorrem dessa distinção, implicações estas que até hojem ocupam os críticos de Dworkin e este ao ter que responder às mais variadas críticas desenvolvidas contra sua teoria. Na verdade, seria correto afirmar que são essas implicações que mais “pertubam” a mente daqueles que se dedicam ao estudo da Teoria do Direito. Mais que isso: são elas responsáveis por um verdadeiro reavivamento das discussões relacionadas a essa área do conhecimento jurídico. O que a maioria dos autores brasileiros ignorou foi o fato de que essa distinção implicou a não separação entre questões analíticas e que questões normativas ou a reunião dessas questões após a separação feita por John Austin no século XIX. A teoria de Dworkin está assentada em uma teoria moral e política mais geral. Digo isso porque se reduzirmos a distinção entre regras e princípios como separação de padrões normativos que compõem o direito, teremos que reconhecer que foram dados muitos poucos passos de Jeremy Bentham para cá na Teoria do Direito.


Dworkin fala de princípios em sentido amplo e em sentido estrito. No sentido amplo, princípios seriam padrões que não se assemelham às regras. No sentido estrito, princípios seriam padrões que além de serem diferentes das regras também o são das políticas. Essas dizem respeito à promoção de um fim social. Àqueles são observados, não porque implementam ou asseguram uma situação social, politica ou econômica desejável, mas por serem uma exigência da moral política. A diferença “qualitativa” entre regras e princípios não foi aceita sem reservas por alguns importantes teóricos. Por exemplo, entre autores estrangeiros, Robert Alexy e Alexander Peczenik estão entre aqueles que a reconhem e Neil MacCormick e Joseph Raz fazem parte do grupo dissidente. No Brasil, a distinção entre regras e princípios parece não ter encontrado resistência. Tem sido, pelo contrário, muito festejada. Quase todos os autores que escreveram ou escrevem sobre princípios reduzem, no entanto, esses padrões ao Direito, no seguinte sentido: os princípios podem ser diferentes das regras mas ainda assim devem ser jurídicos. O problema é que podemos observar na grande maioria dos textos e livros brasileiros que tratam dessa distinção a omissão da informação de que os princípios, em sentido estrito, não são e nem precisam ser necessariamente jurídicos. Em outras palavras, os autores brasileiros não afirmam, categoricamente, que a distinção entre regras e princípios tal como formulada e pensada por Dworkin implica na possibilidade de se reconhecer princípios morais como padrões de comportamento para o Direito. Acredito que essa omissão se dá por duas razões. Primeiro, pode ser que os autores brasileiros receiam afirmar que os princípios incluem padrões morais e por isso não escrevem a respeito, sob pena de estarem assumindo um fundamento já não mais aceito pela maioria dos estudiosos. Segundo, pode ser que esses autores não tenham compreendido a própria teoria de Dworkin. Essa última possibilidade pode decorrer de vários fatores, como, por exemplo, a leitura apressada e desatenta, a leitura feita apenas de comentadores, ou a leitura incompleta, no sentido de que, embora esses autores tenham lido sobre essa distinção, não teriam eles dado continuidade à leitura dos escritos de Dworkin, sobretudo dos textos nos quais este autor veicula suas respostas aos seus críticos.


Um dos primeiros e principais críticos dessa distinção foi Joseph Raz. Em seu artigo Legal Principles and the Limits of Law, publicado em 1972, Raz afirma que “não há nada na argumentação de Dworkin que demonstre haver razão para se abandonar a tentativa de estabelecer os limites do Direito”. Ou seja, não haveria nenhum argumento plausível para abandonarmos a pretensão de autores de definir o que é o Direito, no sentido de identificar quais padrões são jurídicos e quais não o são. Raz quer dizer com isso que a crítica de Dworkin a Hart, no que diz respeito à impossibilidade de alguma regra de reconhecimento fornecer um teste capaz de identificar princípios, deve ser rejeitada. Para ele, Dworkin estaria correto apenas se afirmasse que padrões “não-jurídicos” também devem fazer parte do Direito.


O erro de Raz é o mesmo no qual incorrem muitos juristas brasileiros: pensar que, para Dworkin, princípios seriam apenas padrões jurídicos. Ao responder a Raz, em 1972, Dworkin esclareceu:

“Na verdade, quero opor-me à ideia de que ‘o direito’ é um conjunto fixo de padrões de algum tipo. Ao contrário, o que enfatizei foi que uma síntese acurada dos elementos que os juristas devem levar em consideração, ao decidirem um determinado problema sobre deveres e direitos jurídicos, incluirá proposições com a forma e a força de princípios e que, quando justificam suas conclusões, os próprios juízes e juristas, com frequencia, usam proposições que devem ser entendidas dessa maneira. Nada disso, creio, compromete-me com uma ontologia que pressuponha qualquer teoria específica da individuação.”


Ora, bem observada, a relutância dos autores brasileiros em aceitar o fato de que Dworkin defende, sim, o reconhecimento de princípios morais como padrões para o Direito quando fala de princípios pode ser decorrente do fato de esses autores defenderem, na maioria dos casos de forma inconsciente, duas possíveis e distintas estratégias positivistas (sim, positivistas) descritas por Jules Coleman em seu livro The Practice of Principle. A primeira delas, chamada de positivismo “exclusivo”, e que tem Joseph Raz como seu paladino, insiste que aquilo que no Direito se proíbe ou se permite não pode depender de qualquer critério ou padrão moral. A segunda, defendida com veemência pelo próprio Jules Coleman e por ele denominada positivismo “inclusivo”, defende que o Direito pode conter critérios ou padrões morais, mas somente se houver uma convenção a esse respeito. Essa última estratégia mereceu maior atenção de Dworkin, pois Coleman insiste afirmar que os princípios morais só se tornam aplicáveis às controvérsias jurídicas quando normas jurídicas, que não possuem conteúdos morais, os designam como jurídicos. Referindo-se ao que já argumentava em 1967, Dworkin, trinta anos depois, novamente esclareceu sua posição:

“Apresentei o argumento doutrinário de que não podemos entender a argumentação e a controvérsia jurídicas exceto a partir do pressuposto de que as condições de veracidade das proposições de direito incluem considerações morais. Não pretendi apresentar, afirmei, o argumento taxonômico falacioso de que tudo que fizer parte dessas condições de veracidade deve ser considerado como pertencente a um conjunto distinto de regras ou princípios que chamei de jurídicos. De lá para cá, creio que meus textos sobre o positivismo deixaram claro qual é o meu alvo”.


A maioria dos autores brasileiros também considera que a distinção entre regras e princípios feita por Dworkin foi responsável pela passagem do positivismo para o “pós-positivismo”. Esse “pós-postivismo” é definido de vários modos, mas suas definições sempre incluem o fato de o Direito não ser mais algo composto apenas por regras mas o de ser ele, agora, um conjunto mais amplo no qual se incluem também os princípios. Muitos chegam, inclusive, a afirmar que Dworkin seria um “pós-positivista”. Não estariam esses autores equivocados se Dworkin considerasse os princípios apenas como padrões jurídicos. Assim sendo, seria compreensível o uso do “pós”, pois representaria um avanço, que no caso seria a inclusão dos princípios como espécies de normas jurídicas. Contudo, Dworkin não é um pós-positivista, mas, sim, um antipositivista, como ele próprio se denomina. Explicararei, porém, essa questão em outro artigo.



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