O Precedente[1]
Michele Taruffo[2]
Tradução de Rafael Augusto Zanatta[3]

            Antes de falar do precedente, farei duas considerações de ordem geral. Retomando de forma mais precisa algumas das alusões feitas sobre a legalidade, quero assinalar: deve-se defini-la como um critério de decisão necessário, pelo menos a partir de dois pontos de vista, tornando-se talvez menos óbvia esta afirmação geral.
            O primeiro é que, no âmbito da teoria geral do conflict resolution, ou resolução de conflitos, existem teorias de acordo com as quais, a função do processo, e, portanto, do juiz, é exclusivamente a de resolver o conflito, ou seja, por fim à controvérsia.
            Esta forma de considerar as coisas não leva em consideração os critérios com os quais o juiz põe fim à controvérsia; o que interessa, nesta perspectiva, é que, em certo momento, o conflito termine, não importa como. A finalidade é a de eliminar o conflito. A este aspecto, uma decisão justa ou uma decisão injusta, uma decisão legítima ou fundamentada violando uma norma, são iguais, sempre e quando se termine com o conflito.
            A teoria de resolução de conflitos tem como finalidade ocupar-se das maneiras através das quais se eliminam os conflitos e como essas teorias tem sido bastante difundidas no pensamento jurídico nos últimos anos, é oportuno distinguir entre uma decisão justa e a pura e simples eliminação da controvérsia que pode ocorrer de qualquer maneira.
            Às vezes digo aos meus estudantes que se elimina a controvérsia também matando o adversário. Se um mata o adversário, a controvérsia se acaba. As empresas podem se eliminar do mercado. Isso acontece com freqüência. Há muitas maneiras eficazes para eliminar a controvérsia, muitas delas são ilegais ou injustas; mas, se a finalidade é eliminá-la e ponto, todo o resto não conta.
            Então, uma coisa é a resolução da controvérsia e outra distinta é a decisão justa de uma controvérsia. A decisão justa implica no uso do critério representado pela lei; a resolução de uma controvérsia não necessariamente implica na aplicação deste critério.
            Outro aspecto em que se torna importante a referência à legalidade é a utilidade de distinção entre julgamento e decisão: um problema pode ser decidido sem julgamento, por exemplo, simplesmente jogando os dados à sorte. Vou dar um exemplo clássico: o Juiz Brideloie, jogando os dados. Há também um filósofo do direito contemporâneo, Neil Duxbury, que num livro que escreveu há alguns anos, “Random Justice”, propõe a sorte como método racional para resolver conflitos.
            Essas coisas não são absurdas. Com isto quero dizer que tais coisas ainda são propostas hoje.
            Eu faria esta distinção: o julgamento é uma decisão que faz segundo o direito. Uma decisão, por outro lado, pode ser tomada de qualquer forma. Então, o mesmo que se diz a respeito da resolução das controvérsias, desta vez se aplica especificamente ao momento de resolução da controvérsia.
            Qualquer coisa pode ser decidida de qualquer maneira; mas a decisão judicial é um julgamento: por tanto, implica no raciocínio e também em critérios de decisão; ainda mais, se estamos dentro de um sistema inspirado no princípio da legalidade, o critério obrigatório de decisão é a aplicação do direito. Isto para ordenar um pouco as idéias ou suprimir alguns problemas.
            O segundo ponto de vista, sobre o qual não vou insistir, mas que é importante mencionar, é que interpretar um preceito quer dizer atribuir-lhe significado, o qual não está implícito no texto. Nenhum texto leva com si mesmo seu significado. É o intérprete que vai atribuir significado ao enunciado textual. Sobre isso, os juristas, como muitas vezes ocorre, chegam tarde, porque tem sido os críticos literários e os estudiosos da interpretação literária, os semiólogos como Umberto Eco e os escritores como Ítalo Calvino, os primeiros que tem declarado que o texto em si mesmo não é nada, senão até o momento em que chega um intérprete, que lhe vai atribuir um ou vários significados.  É aí quando se pode aplicar a máxima tradicional “se algo está claro, não requer seja interpretado”. Sem embargo, a máxima está equivocada, porque nunca há nada que seja verdadeiramente claro. Está claro só aquilo que se considera claro; mas isso pressupõe um julgamento implícito, que já atribuiu um significado a esse enunciado. Então, considerar um enunciado claro se deve somente ao que implicitamente já se interpretou.
            Daqui resulta que se pode eliminar uma distinção que incomodará os filósofos da língua inglesa, que separam os hard cases dos easier cases, pois não há nenhum caso que em si seja difícil, como não existe nenhum caso que em si seja fácil.
            Um caso aparentemente fácil pode tornar-se imediatamente difícil no momento em que se questiona o significado da norma que se está aplicando. Pode ser que um caso tenha sido fácil durante dezenas anos até que alguém diz: “não é certo, este preceito não deve ser interpretado assim”. No momento em que surge o problema da interpretação, o caso fácil já se tornou difícil, podendo também ocorrer o contrário. Os casos difíceis podem tornar-se fáceis no momento em que uma determinada interpretação de uma norma se consolida, então, já não se coloca em discussão e, neste momento, o caso difícil se torna fácil. Todas essas coisas são variações sobre um mesmo tema – como diriam os músicos – e é o intérprete que atribui significado ao texto. O texto por si, em si mesmo, não possui nenhum significado que se impõe a um intérprete.
            Naturalmente, isto faz surgir o problema dos limites que o intérprete – no nosso caso o juiz – encontra nesta atribuição de sentido a um texto. E aqui também eu faço remissão a um livro que é uma compilação de ensaios de Umberto Eco que se chama “Os limites da interpretação”. Os ensaios tratam sobre os limites da interpretação de textos literários ou de textos em geral. O que escreve Umberto Eco é uma crítica literária; mas sem trocar uma só vírgula, isso é válido também para a interpretação da lei, no plano dos conceitos gerais. Portanto, pode-se pensar nos limites que derivam da linguagem que se utiliza, pois certas palavras possuem somente três ou quatro significados e não um número infinito de significados.
            O dicionário tem um sentido e vincula o intérprete. Portanto, o sentido de uma palavra pode caber dentro de certo leque de significados determinados pelo uso. Eu não posso, por exemplo, interpretar a palavra cavalo, dizendo que é um animal de seis patas e um chifre na testa. Não tenho essa liberdade, porque o significado consolidado do termo já me vincula. No passado, poderia ter ocorrido que alguém confundira camelos com cavalos, porque alguém nunca tinha visto um camelo, mas a linguagem estabelece vínculos para o intérprete. A linguagem comum o faz: com maior razão, o faz também a linguagem técnica do direito, pela qual é uma presunção dizer que uma coisa é diferente na linguagem técnica e na linguagem comum. A “prescrição” tem um determinado sentido no âmbito do direito civil; mas não é a mesma “prescrição” do médico, quando faz uma receita médica.
            Enfim, muitas palavras que tem diferente significado se referem a coisas superficiais. Sem embargo, tudo isso deve ser levado em conta, porque o primeiro limite sistemático na discricionariedade do intérprete é a linguagem utilizada para escrever o texto, o texto que irá tratar de interpretar.
            Depois vem o nível das convenções interpretativas. Cada comunidade lingüística possui suas próprias convenções que filtram o significado, ou os significados possíveis, sendo muitas vezes convenções não escritas, às vezes codificadas, às vezes não codificadas. São convenções da comunidade lingüística e logo, a comunidade social dentro da qual se interpreta o texto, se vão estabelecendo e podem ser convenções distintas.
            Algumas vezes estas convenções se traduzem em normas. São normas jurídicas com respeito à interpretação das próprias normas jurídicas. Por exemplo, no Código Civil italiano, num título preliminar e em outros códigos, talvez também no de vocês, existem normas que se dirigem ao juiz para lhe explicar lhe quais os critérios permitidos para interpretar as normas que ele irá aplicar. Então, estão as interpretações literal, sistemática, teleológica, orientadas às conseqüências.
            Existem normas sobre a interpretação dos contratos que substancialmente são a mesma coisa: respeitar a vontade das partes, aplicar a boa-fé, etc. Estas são regras, normas sobre a interpretação de outras normas, privadas ou não, conforme o caso, e depois teremos o nível dos assim chamados cânones da interpretação, o argumento ad major e ad minus, o argumento em contrário, o de analogia, o a fortiori, etc. O conjunto destas regras de interpretação representa o conjunto dos limites para o intérprete da linguagem, pouco a pouco, até chegar às normas expressadas com respeito à interpretação.
            Alguém pode perguntar: como se controla o arbítrio do juiz quando interpreta a lei? Pois se faz assim: o intérprete que quer interpretar corretamente o texto que está interpretando é o primeiro que tem que aplicar estas regras, as regras de uso correto da linguagem, as convenções de sentido que estão vigentes dentro da comunidade, os cânones de interpretação jurídica, as normas jurídicas com respeito à interpretação dos textos legais.
            Imaginando este conjunto, pode-se notar que é um conjunto de regras limitativas bastante fortes, desde o sentido das palavras individualmente até o sentido da sintaxe; desde o enunciado do sistema até o enunciado comparado com outros enunciados do sistema. Enfim, critérios para resolver as antinomias, por exemplo, todas essas coisas que nos ensinam os filósofos da argumentação jurídica, são coisas que devem ser observadas ao interpretar e que podem ser limites para um intérprete.
            Aqui, então, a atribuição de significado ao enunciado normativo é algo muito aberto e algo muito livre. Por exemplo, a distinta natureza da linguagem que vai utilizar o legislador, a textura aberto ou não aberta das normas jurídicas incide sobre os âmbitos de liberdade. Interpretar uma regra que diz que “algo deverá acontecer dentro de trinta dias a partir de um momento”, não é o mesmo que interpretar uma norma constitucional, por exemplo, de onde há um princípio de igualdade. Existe uma estrutura diferente.
            Tudo isto representa os limites para a interpretação que, por um lado, é livre a princípio, livre em si mesma, no sentido de que não está vinculada a priori por nada, muito menos por um significado pré-determinado da norma; mas, por outro lado, não é arbitrária, porque está guiada, não por uma regra, mas sim por um conjunto sistemático e estratificado de regras de interpretação e, por tanto, a interpretação correta está no ponto médio entre estes dois extremos: a liberdade do intérprete, por um lado, e os vínculos de distinta natureza que se impõem ao intérprete, por outro. A interpretação correta é aquela que é livre; mas aquela que se aplicam as regras de interpretação.
            Com respeito aos problemas gerais, até agora, todas essas questões se aplicam às normas e eu aqui parto de uma definição tradicional da norma jurídica, ou seja, um enunciado de caráter geral e abstrato que a define por classes, não por eventos ou por temas ou sujeitos específicos: “todos aqueles que”, ou “todas as vezes que”, assim é como dizem as normas e se referem a esta classe de eventos, a alguma conseqüência jurídica ou, pelo menos, a uma classificação jurídica.
            O problema é o de remeter o caso particular ou específico à previsão geral que estabelece a norma; isto marca o limite da interpretação no sentido clássico, no sentido dos teóricos da interpretação, sobre tudo nas culturas de língua inglesa – as alemãs em particular – que sempre estão ocupadas da interpretação das normas como enunciados gerais e abstratos e param por aí.
            O silogismo judicial e as outras coisas que nós discutimos anteriormente se referem a isso. Este discurso marcou, por muito tempo, a grande discriminação entre a cultura jurídica do civil law e do common law. Os civil lawyers, como dizem os americanos, somos nós, os italianos, e também vocês, os mexicanos. É claro que nós, os civil lawyers, estamos acostumados a raciocinar juridicamente em termos de aplicação de normas gerais para casos particulares. Os common lawyers não estão acostumados a pensar desta maneira; tanto é assim, que este é um elemento que falta em sua formação cultura. É uma categoria que não possuem, simplesmente, porque foram acostumados a raciocinar a partir dos precedentes. Isto remonta à história do direito inglês e, depois, encontra várias manifestações tanto na Inglaterra como nos Estados Unidos. Até poucos anos, era fácil encontrar, por parte dos que se dedicavam ao direito comparado, esta distinção: o common law é o sistema que se baseia no precedente, e o civil law é o que se baseia na norma jurídica geral e abstrata (lei).
            O fato é que as coisas mudaram ultimamente, de modo que uma distinção deste tipo, formulado nestes termos, é hoje algo completamente falso, por suas razões: a primeira é que as leis escritas tomaram no sistema da common law um espaço que tradicionalmente não tinham. Os ingleses e os americanos reconhecem que hoje os statutes, ou seja, nossas leis, partes inteiras do direito, estão reguladas por normas de lei, de origem parlamentária. Como nosso direito mercantil, processual, etc. Portanto, sobre este lado rompeu-se um pouco a distinção. Já não é certo que o common law é um direito jurisprudencial.
            Por outro lado, também se rompeu o outro aspecto da distinção. Já não é certo que o civil law é um direito de lei escrita, geral e abstrata. Fazendo uma avaliação grosso modo e muito aproximada, pode-se dizer que hoje as diferenças, se bem existem entre os dois tipos de sistema, são difíceis de delimitar.
            Os juízes italianos, alemães, espanhóis, e imagino que também os latino-americanos, usam o precedente de forma substancialmente igual, não diferente do modo em que o fazem os juízes da common law. Até alguns anos, fizemos um estudo comparado com um grupo de amigos filósofos do direito, precisamente sobre essas coisas levando em consideração doze ordenamentos distintos, dois de common law: Inglaterra e Estados Unidos, e dez de civil law: Finlândia, Itália, Alemanha, etc., e analisamos estes ordenamentos com os mesmos instrumentos. O resultado foi que, na realidade, as diferenças no uso concreto do precedente são pouco relevantes. A única exceção aparente está representada pela França, onde os juízes não citam os precedentes quando fazem a motivação da sentença, mas os franceses dizem que não as citam, “as usam”, portanto esta é uma diferença somente aparente e não uma diferença real. Não é que o juiz francês não utiliza o precedente para raciocinar, mas não o especifica por razões de ordem judicial.
            Este fato despacha uma das distinções fundamentais que estavam acostumados os estudiosos do direito comparado. A contraposição da lei escrita com o precedente já não existe e, sobretudo, já não serve para dividir o mundo em dois, as coisas tornaram-se mais complexas.
            Outro aspecto que também vai por terra é a diferença tradicional entre eficácia vinculante, ou de direito e a vigência, ou eficácia persuasiva, ou de fato, do precedente judicial. Aqui também tradicionalmente temos uma decisão, como dizem os americanos e os ingleses, que se baseia na eficácia do vínculo do precedente e, ao contrário, outra com um uso decididamente persuasivo. É uma distinção que se alguma vez foi real, já não é mais, já que não existem estes termos. Primeiro: o juiz americano nunca se considerou verdadeiramente vinculado ao precedente, sempre disseram que eles utilizavam o precedente por comodidade, quando consideravam que a decisão, a regra de decisão era a correta. Se não gostavam, não utilizavam o precedente e inventavam outro critério de decisão. Sempre, ademais, eles têm feito assim. Portanto, no estilo americano, a utilização do precedente é a utilização econômica das fontes. O juiz se reporta ao precedente, porque assim faz menos esforço para explicar porque decidiu assim, mas também no sistema inglês, que tradicionalmente se considerava o mais rigoroso, o vínculo de direito derivado do precedente se rompeu.
            Foi em 1966 quando as Cortes Supremas inglesas anunciaram que de ali em diante já não seriam considerados os precedentes como vinculantes, portanto, se destruiu a base do sistema dos precedentes. Por outra parte, Jannin Engles reuniu não menos que 20 a 25 estratégias que os juízes ingleses utilizaram para não serem vinculados pelos precedentes. A “desaplicação” do precedente, que se converteu em algo muito velho, é um assunto diferente.
            Na outra vertente temos, pelo contrário, muitos casos em que o precedente da civil law, sobretudo o que vem dos Tribunais Supremos, das Cortes de Cassação, não é formalmente vinculante, mas que, às vezes, é tão persuasivo que acaba por exercer no juiz tal pressão, se não igual, pelo menos parecida com a que tem aquela que se formou com anterioridade nas cortes norte-americanas.
            Se não pensarmos de maneira formalista, descobriremos que não existem grandes diferenças entre a utilização do precedente que se fazia na Inglaterra e Estados Unidos e a utilização do precedente na Alemanha, Itália, etc. Até aqui, utilizamos classificações distintas para indicar estas coisas, mas a realidade derrubou por terra as classificações, portanto uma operação de limpeza conceitual irá requerer que nos livremos das velhas classificações, porque são obsoletas.
            Um problema importante é que ninguém, que eu saiba, resolveu, todavia, o fundamento teórico – se é que existe – do sentido que há ao justificar uma decisão dizendo: “eu assim decido, porque outros juízes antes que eu assim também o decidiram”. Parece algo bastante absurdo. Se dissermos assim: “Decido colocar o açúcar no café, porque alguém mais também coloca” não tem sentido e, sem embargo, nos encontramos frente à práxis cotidiana, que pesa muito nas decisões do juiz.
            Portanto, no plano teórico, alguém se perguntou: De onde vem o precedente? Que sentido tem sua utilização? Porque poderia servir para algo remeter-se a outras decisões relacionadas a outras pessoas? Alguém disse: “é útil que haja uma continuidade na forma com que juízes decidem as mesmas questões”. Alguém interpretou isso dizendo: “é útil que os juízes sejam previsíveis, porque desta maneira os sujeitos que devem cumprir contratos sabem o que tem que fazer, devem prever o que o juiz vai decidir”. Esta é uma argumentação influenciada pelos americanos, quando se dizia que o direito era a previsão do que iriam fazer os juízes (Holmes).
            Não obstante, a relação jurídica precisa ter como referência critérios previsíveis, tanto é assim que inclusive no passado, nos Estados Unidos, se discutiu a correção da práxis das cortes de overruled, ou seja, de modificar o sentido, porque se dizemos que as partes de um processo basearam suas pretensões pensando que a corte seguiria certos critérios pré-existentes, a mudança de critério prejudicaria as partes. Então, este sistema ainda é utilizado. A Corte Suprema diz: “eu tenho pensado em não mais seguir usando o precedente x, porque já não é adequado, mas neste caso, ainda o aplico, aplico outra vez para que não haja surpresas para as partes e aviso que a próxima vez modificarei o precedente”. Isto é o overruled, que é apoiado pelas cortes norte-americanas para resolver o problema. Podem notar que, em geral, estas questões de previsibilidade e continuidade podem ter um valor ou um desvalor, dependendo do contexto em que se considerem.
            Outra explicação muito comum da utilização do precedente é a que considera o princípio de igualdade. Fala-se que todos os que se encontram na mesma situação jurídica devem ser tratados da mesma maneira. E uma forma pode ser a de vincular os juízes para que utilizem o mesmo critério de julgamento, que é uma forma para justificar a eficácia do precedente. Colocadas as coisas desta forma, o assunto é bastante complicado.
            Em que medida o juiz se deve considerar? De iure ou de facto? Obrigado a seguir o precedente para aplicar valores, como a continuidade da jurisprudência ou a previsibilidade das orientações dos tribunais? Os valores não se encontram escritos em nenhuma parte, portanto, quem alude a esses valores se refere a algo que nem sequer é objeto de garantia constitucional.
            Noutro sentido, existem outros problemas que vem de forma especialmente clara no caso do autoprecedente, isto é, quando uma corte considera que tem ou não que seguir seu próprio precedente e aqui ele diz: “eu juiz deveria decidir esta questão desta mesma forma, porque eu mesmo ou outro juiz desta mesma corte, decidiu esse problema desta forma há dez anos”. Existe alguma justificação para este raciocínio? Provavelmente não, mas se vocês analisarem como se empregam normalmente os precedentes e, sobretudo, os autoprecedente das Cortes Supremas, é precisamente assim.
            E mais, existem muitos estudos na literatura jurídica que buscam induzir as cortes a seguir seu próprio precedente, prescrevendo, por exemplo, que um juiz pode não seguir os precedente de sua corte, somente se demonstrar que existem boas razões para mudar de idéia. Esta forma segue sendo uma maneira para reafirmar o precedente, havendo um peso de demonstração mais para o juiz, ao decidir seguir o precedente; é um vínculo não absoluto, mas ainda é um vínculo. Se eu tenho que demonstrar algo, quero dizer que “tenho que fazê-lo”, “que estou obrigado a fazê-lo”. Então, aqui se pode notar que muitos problemas derivam da dimensão vertical ou horizontal do precedente.
            A dimensão vertical se funda no princípio da autoridade, que pode ser reconhecido ou não. Refere-se à razão pela qual um juiz de primeiro grau considera estar vinculado e tem que cumprir com um precedente fixado pela corte suprema na ausência de outras normas, que embora existissem, não mudaria nada. Está relacionada com a estrutura hierárquica do ordenamento, nem mais nem menos. Basear a decisão numa idéia da corte, que está em nível superior, implica que esta exerce uma quantidade de poder mais ampla. É um princípio de autoridade, que nosso sistema coloca na estrutura burocrática e hierárquica da organização; o fato que nosso ordenamento jurídico é feito conforme essa estrutura, que é teoricamente a do exército napoleônico, é motivo suficiente para fundamentar um vínculo jurídico para o juiz.
            As coisas se formam de maneira ainda mais rara quando nos referimos ao precedente horizontal, que se dá numa corte do mesmo nível, de primeiro grau. Aqui, nem sequer se pode invocar o princípio de autoridade hierárquica ou de distribuição vertical do poder. O tribunal de primeira instância de Puebla, o tribunal de primeira instância de Morelos, quando cita a decisão de outro, o que está fazendo? Está invocando uma autoridade? Que outra coisa faz? Eu diria que está colocando um exemplo, mas não um precedente, cita algo que, pelo menos, está completamente carente de toda força de autoridade, no seu caso. Então, porque cito o precedente de meu colega de Puebla? Porque é brilhante? Pois seria também, em outros termos, porque me cai bem. Ele não tem nenhuma força de persuasão relevante do ponto de vista jurídico e, sem embargo, muitas vezes os precedentes são citados desta maneira como, por exemplo, os do exterior, ou precedentes de outras jurisdições. Ocorre poucas vezes, mas chega a acontecer. Aqui existem problemas muito complexos, muito difíceis, que devem ser considerados. A utilização do precedente se converteu em algo muito complicado e diferenciado e, por tanto, cada exemplo deverá ser analisado individualmente.
            Foi ponderado até aqui pensando em cada precedente individual, cada decisão que se toma como justificação para uma decisão; mas devemos recordar que também existe a jurisprudência, entendida como conjuntos de precedentes, e aqui abre-se outro universo. Uma coisa é raciocinar dizendo: eu tenho a decisão do caso “x” e me pergunto se será útil utilizá-lo ou não, como argumento, no caso “y”. A outra coisa é dizer: para este caso existem cem decisões distintas, vinte da Corte Suprema, trinta das cortes e outras cinqüenta dos demais tribunais, isto já não é o precedente, é outro fenômeno distinto, que não existe no sistema de common law.
            Aqui surgem problemas como se encontro sem sentenças sobre o caso que tenho que decidir. As possibilidades gerais são muitas. Uma é que as cem sentenças digam o mesmo: a chamada jurisprudência uniforme, constante. Outro caso é que as cem sentenças sejam divididas entre outras duas ou três possíveis soluções, por exemplo, tese a, b, c, trinta sentenças para uma tese, outras trinta para outra, e quarenta para outra. Cada grupo está representado por sentenças emitidas por órgãos jurisdicionais distintos. A mim, de que me serve? Que faço com essas fontes? Realizo um cálculo estatístico de qual é a jurisprudência majoritária ou minoritária? A que pesa mais? A que pesa menos? Se eu tiver oitenta sentenças de um lado e três sentenças do outro, então, o que faço?
             Existem conflitos no interior da jurisprudência, coisas que não se verificam quando se utiliza o precedente de tipo anglo-americano em sentido próprio, porque o precedente contrário seguinte cancela o anterior; mas em nossos ordenamentos, nada cancela nada, então, meu repertório de jurisprudência pode encontrar a última decisão da corte “x”, mas também todas as decisões diferentes da mesma corte nos últimos cinqüenta anos e não se excluiu nada, não se cancelou nada. Ao invés, o overruled do precedente americano cancela o precedente anterior. Isso não ocorre em nossa jurisprudência, pois surgem conflitos internos diacrônicos e sincrônicos.
            O que acontece quando a mesma corte, no mesmo dia, decide a mesma questão em duas formas distintas? Na Itália isso acontece - espero que aqui não ocorra, mas na Itália muitas vezes isso se dá. Aqui já não estamos na lógica clássica do precedente. Estamos em outro mundo. Tanto é assim que mudou, ou está mudando, a forma de conceber a função das Cortes Supremas nos distintos ordenamentos. Tradicionalmente, baseados na Corte de Cassação francesa, sempre se disse, pelo menos na Europa, não na zona alemã, que a função da corte suprema era a de ser o último juiz de legitimidade do ordenamento, com a conseqüência de que até não muito tempo atrás, todas as causas em que surgiam questões de legitimidade, poderiam ser levadas às Cortes Supremas. Na Itália, inclusive, existe uma garantia constitucional neste sentido. Já o vimos na Alemanha, já o tentaram na França, se nota muito claramente no Código de Processo Civil espanhol de 200 e se discute em todos os ordenamentos. A tendência é que a função da Corte Suprema seja a de ser uma “corte do precedente”;  portanto, já não é a corte que vá dizer a última palavra em termos de legalidade ou legitimidade da decisão do caso, mas sua função é a de governar a jurisprudência.
            Basta ler o artigo 477 do último código espanhol, de onde se defino o chamado interés casacional como motivo fundamental de recurso ao tribunal supremo, em termos de conflito de jurisprudência pré-existente sobre a questão. Depois, por exemplo, a razão para ir ao Bundersgerichtshof (Supremo Tribunal Federal alemão) é a importância específica da questão de direito relacionada à necessidade de fixar um precedente ou de resolver um conflito de jurisprudência sobre o tema. A corte é a que governa o precedente. Aqui, o ponto de referências mais ou menos consciente de todos estes ordenamentos, mesmo com técnicas muito distintas, desde sempre é o exemplo mais puro, talvez extremo, de “corte do precedente”.
            A Corte Suprema dos Estados Unidos decide menos de duzentos casos por ano como Corte Suprema, federal, civil, penal, administrativa e constitucional, o que a permite ser constituída ou integrada por nove juízes (porque a corte suprema tem o poder absoluto de decidir quais casos pretende decidir). Quando não pretende decidir um caso, pronuncia duas palavras: cerciorare denai, reexame excluído. Quando atua, decide o caso a partir dos seguintes pressupostos: 1) quando existe conflito de jurisprudência das cortes inferiores, ao redor de uma questão de direito, deve fixar um precedente resolvendo o conflito; 2) quando se trata de uma nova questão sobre a qual, todavia, não há orientação consolidada, incluindo não havendo conflito, e; 3) quando a corte pretende eliminar seus próprios precedentes e anunciar um novo. Em todos os demais casos, significa dizer, quando a corte considera que não faz falta fixar um precedente ou pretende manter um que já existe, já não decide o caso.
            Pensando em vários ordenamentos modernos, este é um caso limite: o caso mais puro de uma corte suprema, cuja função é exclusivamente a de governar o precedente e isto é o ponto fundamental da evolução do ato em muitas das cortes supremas que eu conheço, sobretudo na Europa, e na Inglaterra, especificamente.
            Como vocês podem ver, o tema do precedente é infinitamente mais complexo que se possa pensar, simplesmente vendo nas sentenças, as referências que se relacionam a outras decisões. Tudo é discutível, tudo tem que relacionar-se; a estrutura do ordenamento, as justificações à posição do juiz, a função dos juízes que estão acima do juiz que utiliza o precedente. Repito, o papel do precedente judicial e da jurisprudência é um mundo, não é somente uma simples técnica para justificar uma decisão.



[1] Palestra promovida em 19 de Março de 2002, na sede do Tribunal Electoral Del Poder Judicial de La Federación Mexicana, no Salón de Plenos Del Aniguo Palacio de Justicia, em Morelia, Michoacán. In: TARUFFO, Michele. Cinco lecciones mexicanas: memoria del taller de derecho procesal. Tribunal electoral del poder judicial de la Federación, Escuela judicial electoral, México, 2003, p. 29-41.
[2] Professor Catedrático de Direito Processual da Universidade de Pavia - Itália
[3] Acadêmico de Direito da Universidade Estadual de Maringá – Paraná.



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